Inácio lembrava com orgulho seus tempos de atleta. Nunca foi profissional, mas, no futebol de quarta-feira, destacava-se pelo fôlego. Quando perdia, criava confusão se fosse escolhido para sair e dar a vez para o time de fora. Virava goleiro só pra ficar em campo. Inácio gostava de quando chovia. Muita gente faltava e a briga pra ficar em campo era menor. Bons tempos de atleta viveu Inácio.
Hoje, nove anos depois, casado e com a cintura bem maior, Inácio trabalha pra manter a casa. Seu esporte oficial passou a ser a sinuca. Joga religiosamente todas as quintas. Inácio ainda briga pra ficar na mesa quando perde. É um atleta.
O grupo da sinuca sofreu uma baixa. O Velho Antunes, tradicional conselheiro da turma, decidiu aposentar-se. Reclamava que não tinha mais idade pra ficar na fumaça do salão e que, mesmo as partidas, já não lhe davam tanta alegria. Decidira que no seu aniversário de 79 anos levaria um bolinho feito por sua filha mais nova e faria uma despedida em alto estilo. Embora tenha chegado a pensar que, com o grupo menor, sua permanência na mesa aumentaria, Inácio sentiu a saída de Antunes. Pensou no dia em ele mesmo deixaria o esporte e tratou de erguer seu chope para propor um brinde. Antunes merecia.
A vaga de Antunes foi preenchida na semana seguinte por Rogério. O rapaz, sobrinho do Lima, um dos fundadores do grupo, foi convidado. Um convite da diretoria deve ser acatado, mesmo contra vontade de alguns. Inácio não gostou muito. Rogério, apesar do bom desempenho na sinuca, era diferente do resto da turma. Aguardava sua vez calado, bebia refrigerante light, jamais trapaceava. Um dia comentou que, com a sinuca nas quintas, teria atividade para toda as noites da semana. Nadava nos dias pares, jogava bola nas terças e, agora, sinuca nas quintas. Inácio quis saber mais sobre as terças:
- E o futebol? Salão?
- Society.
- Sete pra cada lado?
- Seis na linha e um no gol.
- Quantas de fora?
- Uma. Incompleta.
Aquilo fez a cabeça de Inácio funcionar. Perdeu a partida de sinuca e, para o espanto do grupo, aceitou esperar a próxima sem reclamar. Queria pensar um pouco sobre suas próprias terças. Apesar de estar fora de forma, seus trinta e cinco anos garantiam uma chance de recuperação. Se participasse de um futebol regularmente largaria o cigarro, cuidaria da dieta. Chegou a sentir-se meio ridículo, mas soltou as palavras como quem pula de pára-quedas. De uma vez. Sem pensar:
- Ô, Rogério! Tem lugar pra mim nesse futebol?
- Claro! Trinta reais por mês pra pagar a quadra – Respondeu enquanto mirava na bola azul.
- Terça, tô lá!
Inácio passou o fim-de-semana como criança na véspera de natal. Sábado, no restaurante à quilo, trocou a carne por um frango grelhado. Decidira levar a sério o projeto de voltar a ser um atleta. Não resistiu ao pudim de sobremesa, mas o projeto ainda estava começando.
Na terça Inácio fez piada no trabalho sobre os gols que faria. Lembrou dos gols que já tinha feito dez anos antes. Descreveu jogadas com riqueza de detalhes para diversão de alguns e tédio de outros. Pediu pro chefe para sair um pouco mais cedo naquele dia. Tinha um compromisso. O chefe liberou.
Na escolha dos times, Inácio foi o penúltimo escolhido. Rogério o escalou num gesto político. Seu novo companheiro de sinuca merecia estrear na pelada jogando.
A bola saiu com o time adversário. Inácio, na posição de zagueiro fixo, largou a defesa e correu pra marcar em cima. Se sobrasse pra ele, quem sabe um gol? Sentiu a perna mais pesada do que esperava já na primeira corrida. Quando perguntado se não era melhor voltar pra defesa, concordou com um gesto. Não conseguiria falar. O ar parecia faltar e, enquanto caminhava de volta para o seu campo, ainda pode ver o golaço do outro time. Goleiro driblado, deitado no chão. Tentou não escutar as reclamações, concentrou-se em normalizar a respiração e esperou atento pelo próximo ataque.
Numa dividida no meio de campo a bola espirrou limpa para os pés de Inácio. Ele parou a pelota com o pé esquerdo e, num segundo, planejou um ataque de dar inveja ao Real Madri. Respirou fundo e partiu corajoso. Inácio retirara forças da alma e, com elegância discordante com seu corpo, driblou o primeiro adversário, correndo pela lateral direita. Fez menção ao cruzamento, forçando a parada do zagueiro do outro time. Num golpe de agilidade, Inácio seguiu avançando com a bola. Seu próprio time estava surpreso. Um craque.
Diante da área inimiga, trocou a bola de pé. O gesto deslocou um zagueiro e deixou o caminho aberto para um goleiro com cara de assustado. Não havia deixado o gol e aguardava atento o chute do estranho atacante. Inácio preparou uma bomba, mas, ao chegar com o pé na bola, fez uma pausa, esperou o goleiro pular e, em seguida, deu toquinho de cobertura com categoria, guardando a bola no fundo da rede. Antes de comemorar, Inácio sentiu o ar lhe faltando. Seu time pulava à sua volta e ele tentava sorrir. Antes de cair deitado, ajoelhou-se e sorriu levando a mão ao peito. Inácio fez uma jogada de craque. E não precisaria mais deixar o campo até a chegada da ambulância. A de fora, era dele.
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